quinta-feira, 23 de março de 2017

Catecismo São Pio X - Na Escola de Jesus



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Catecismo de São Pio X

CAPÍTULO VII Dos Novíssimos e de outros meios principais para evitar o pecado
965) Que se entende por Novíssimos? Novíssimos são chamados nos Livros Santos as últimas coisas que hão de acontecer ao homem.

966) Quantos são os Novíssimos? Os Novíssimos, ou últimas coisas do homem, são quatro: Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.

967) Por que é que esses Novíssimos se chamam últimas coisas que acontecerão ao homem? Os Novíssimos chamam-se últimas coisas que acontecerão ao homem, porque a Morte é a última coisa que nos acontece neste mundo; o Juízo de Deus é o último entre os juízos que temos a passar; o Inferno é último mal que hão de sofrer os maus; e o Paraíso é sumo bem que hão de receber os bons.

968) Quando devemos pensar nos Novíssimos? É bom pensar nos Novíssimos todos os dias, e principalmente ao fazer a oração da manha, apenas acordados, à noite antes do deitar, e todas as vezes que somos tentados a fazer algum mal, porque este pensamento é eficacíssimo para nos fazer evitar o pecado.


CAPÍTULO VIII
Dos exercícios piedosos que se aconselham ao cristão para cada dia

969) Que deve fazer um bom cristão, pela manhã, apenas acorda? Um bom cristão, pela manhã, apenas acorda, deve fazer o sinal da Cruz, e oferecer o coração a Deus, dizendo estas ou outras palavras semelhantes: Meu Deus, eu vos dou o meu coração e a minha alma.

970) Em que deveríamos pensar ao levantar da cama e enquanto nos vestimos? Ao levantar da cama e enquanto nos vestimos, deveríamos pensar que Deus está presente, que aquele dia pode ser o último da nossa vida; e entretanto levantar-nos e vestir-nos com toda a modéstia possível.

971) Depois de se levantar e de se vestir, que deve fazer um bom cristão? Um bom cristão, apenas se tenha levantado vestido, convém pôr-se na presença de Deus e ajoelhar, se pode, diante de alguma devota imagem, dizendo com devoção: "Eu Vos adoro, meu Deus, e Vos amo de todo o coração; dou-Vos graças por me terdes criado, feito cristão e conservado nesta noite; ofereço-Vos todas as minhas ações, e peço-Vos que neste dia me preserveis do pecado, e me livreis de todo o mal. Assim seja". Reza de- pois o Padre-Nosso, a Ave-Maria, o Credo, e os atos de Fé, de Esperança e de Caridade, acompanhando-os com um vivo afeto do coração.

972) Que práticas de piedade deveria fazer todos os dias o cristão? O cristão, podendo, deveria todos os dias: 1 o assistir com devoção à santa Missa; 2º fazer uma visita, por breve que fosse, ao Santíssimo Sacramento; 3º rezar o terço do santo Rosário.

973) Que se deve fazer antes do trabalho? Antes do trabalho, convém oferecê-lo a Deus, dizendo do coração: "Senhor, eu Vos ofereço este trabalho, dai-me a vossa bênção".

974) Para que fim se deve trabalhar? Deve-se trabalhar para glória de Deus e para fazer a sua vontade.

975) Que convém fazer antes da refeição? Antes da refeição convém fazer o sinal da Cruz, estando de pé, e depois dizer com devoção: "Senhor, abençoai-nos a nós e ao alimento que vamos tomar, para nos conservarmos no vosso santo serviço".

976) Depois da refeição, que convém fazer? Depois da refeição, convém fazer o sinal da Cruz, e dizer: "Senhor, eu Vos dou graças pelo alimento que me destes; fazei-me digno de participar da mesa celeste".

977) Quando nos vemos atormentados por alguma tentação, que devemos fazer? Quando nos vemos atormentados por alguma tentação, devemos invocar com fé o Santíssimo Nome de Jesus ou de Maria, ou recitar fervorosamente alguma oração jaculatória, como, por exemplo: "Dai-me a graça, Senhor, que eu nunca Vos ofenda"; ou então fazer o sinal da Cruz, evitando porém que as outras pessoas, pelos sinais externos, suspeitem da tentação.

978) Quando uma pessoa reconhece ou duvida que cometeu algum pecado, que deve fazer? Quando uma pessoa reconhece, ou duvida que cometeu algum pecado, convém fazer imediatamente um ato de contrição, e procurar confessar-se quanto antes.

979) Quando fora da Igreja se ouve o sinal de elevação da hóstia na Missa solene, ou da bênção do Santíssimo Sacramento, que se deve fazer? É bom fazer, ao menos com o coração, um ato de adoração, dizendo, por exemplo: "Graças e louvores se dêem a todo o momento ao Santíssimo e diviníssimo Sacramento".

980) Que se deve fazer quando tocam às Ave-Marias, pela manhã, ao meio-dia e à noite? Ao toque das Ave-Marias, o bom cristão recita o Anjo do Senhor com três Ave- Marias.

981) A noite, antes de deitar, que devemos fazer? À noite, antes de deitar, convém pôr-nos, como pela manhã, na presença de Deus, recitar devotamente as mesmas orações, fazer um breve exame de consciência, e pedir perdão a Deus dos pecados cometidos durante o dia.

982) Que haveis de fazer antes de adormecer? Antes de adormecer, farei o sinal da Cruz, pensarei que posso morrer naquela noite, e oferecerei o coração a Deus, dizendo: "Meu Senhor e meu Deus, eu Vos dou todo o meu coração. Trindade Santíssima, concedei-me a graça de bem viver e de bem morrer. Jesus, Maria e José eu Vos encomendo a minha alma".

983) Além das orações da manhã e da noite, por que outra forma se pode recorrer a Deus no decurso do dia? No decurso do dia pode-se invocar a Deus freqüentemente com outras orações breves, que se chamam jaculatórias.

984) Dizei algumas jaculatórias. Senhor, valei-me; - Senhor, seja feita a vossa santíssima vontade; - Meu Jesus, eu quero ser todo vosso; - Meu Jesus, misericórdia; - Doce Coração de Jesus, que tanto nos amais, fazei que eu Vos ame cada vez mais; - Doce Coração de Maria sede minha salvação.

985) É útil recitar, durante o dia, muitas jaculatórias? É muito útil recitar, durante o dia, muitas jaculatórias, e podem recitar-se também com o coração, sem proferir palavras, caminhando, trabalhando, etc.

986) Além das orações jaculatórias, em que outra coisa deveria exercitar-se com freqüência o cristão? Além das orações jaculatórias, o cristão deveria exercitar-se na mortificação cristã.

987) Que quer dizer mortificar-se? Mortificar-se quer dizer privar-se, por amor de Deus, daquilo que agrada, e aceitar o que desagrada aos sentidos ou ao amor próprio.

988) Quando é o Santíssimo Sacramento levado a um enfermo, que se deve fazer? Quando é o Santíssimo Sacramento levado a algum enfermo, devemos, sendo possível, acompanhá-Lo com modéstia e recolhimento; e, se não é possível acompanhá-Lo, fazer um ato de adoração em qualquer lugar que nos encontremos, e dizer: "Consolai, Senhor, este enfermo, e concedei-lhe a graça de se conformar com a vossa santíssima vontade. e de conseguir a sua salvação",

989) Ouvindo tocar o sino pela agonia de algum moribundo, que haveis de fazer? Ouvindo tocar o sino pela agonia de algum moribundo, irei, se puder, à igreja orar por ele; e, não podendo, encomendarei a Nosso Senhor a sua alma, pensando que dentro em breve tempo hei de encontrar-me também eu naquele estado
.
990) Ao ouvir sinais pela morte de alguém, que haveis de fazer? Ao ouvir sinais pela morte de alguém, procurarei rezar um De profundis ou um Réquiem, ou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria, pela alma daquele defunto, e renovarei o pensamento da morte.




quarta-feira, 22 de março de 2017

A Mãe Do Salvador e Nossa Vida Interior

Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.

Maria Mãe de Misericórdia

Consideremos primeiramente esse título em si mesmo, depois em suas principais manifestações que são como a radiação da doutrina revelada sobre Maria e que a torna accessível a todos.


Artigo I

Grandeza e força dessa maternidade

Mãe de misericórdia é um dos maiores títulos de Maria. Nós nos damos conta se consideramos a diferença da misericórdia, que é uma virtude da vontade, e a piedade sensível, que não passa de uma louvável inclinação da sensibilidade. Essa piedade sensível, que não existe em Deus, já que é um espírito puro, nos leva a nos compadecer dos sofrimentos do próximo, como se nós o sentíssemos em nós mesmos e de fato eles podem nos atingir. È uma louvável inclinação, mas é geralmente tímida, está acompanhada do temor do mal que nos ameaça também, e é muitas vezes incapaz de trazer um socorro efetivo.

Ao contrário, a misericórdia é uma virtude que se acha, não na sensibilidade, mas na vontade espiritual; e como nota santo Tomás, se a piedade sensível se encontra sobretudo entres os seres fracos e tímidos que se sentem logo ameaçados pelo mal que vêem no próximo, a virtude da misericórdia é própria dos seres fortes e bons, capazes realmente de prestar socorro. Por isso se encontra sobretudo em Deus, e como diz a oração do Missal, é uma das maiores manifestações de seu poder e de sua bondade. Santo Agostinho observa que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal do que criar alguma coisa do nada; é maior converter um pecador lhe dando a vida da graça, do que criar do nada todo o universo físico, o céu e a terra.

Maria participa eminentemente dessa perfeição divina, e nela a misericórdia se une a piedade sensível que lhe é perfeitamente subordinada e que a torna mais acessível a nós pois só atingimos as coisas espirituais pelas coisas sensíveis.

A Santa Virgem é Mãe de misericórdia, porque é a Mãe da divina graça. Mater divinae gratiae, e esse título lhe convém porque é Mãe de Deus, autor da graça, Mãe do Redentor, e está associada mais intimamente do que ninguém ao Calvário, à obra da redenção.

* * *

Como Mãe de misericórdia, nos lembra que se Deus é o Ser, a Verdade e a Sabedoria, é também a Bondade e o Amor, e que sua Misericórdia infinita que é a difusão de sua Bondade, deriva de seu Amor antes da justiça vingadora, que proclama os direitos imprescritíveis  do Soberano Bem de ser amado acima de tudo. É o que leva o apóstolo Tiago a dizer (ep. II,13): “A misericórdia se eleva acima da justiça”.

Maria nos faz compreender que a misericórdia, longe se ser contrária a justiça, como a injustiça, se une a justiça ultrapassando-a sobretudo no perdão, pois perdoar é dar acima do que é devido, perdoando uma ofensa.

Percebemos então que toda obra de justiça divina supõe uma obra de misericórdia ou de bondade inteiramente gratuita. Se, com efeito, Deus deve alguma coisa a criatura, é em virtude de um dom precedente puramente gratuito; se ele deve recompensar nossos méritos, é porque, antes, ele nos deu a graça para merecer; se ele pune, é depois de nos ter dado um socorro para tornar realmente possível a realização de seus preceitos, pois ele não manda nunca o impossível.

A Santíssima Virgem nos faz compreender que Deus por pura misericórdia nos dá muitas vezes alem do necessário do que seria de justiça nos conceder; nos mostra que ele nos dá muitas vezes alem dos nossos mérito, como por exemplo, a graça da comunhão que não é merecida.

Ela nos faz perceber que a misericórdia se une a justiça nas penas dessa vida, que são como um remédio para nos curar, nos corrigir se nos trazer de volta para o bem.

Enfim nos faz compreender que muitas vezes a misericórdia compensa as desigualdades das condições naturais pela graças concedidas, como dizem as bem-aventuranças evangélicas, aos pobres, aos que são mansos, aos que choram, aos que têm fome de justiça, aos misericordiosos, aos que têm o coração puro, aos pacíficos e aos que sofrem perseguições pela justiça.

Artigo II

Principais manifestações de sua misericórdia

Maria se mostra como Mãe de misericórdia no que diz respeito à “saúde os enfermos, refugio dos pecadores, consoladora dos aflitos, socorro dos cristãos”. Essa gradação exprimida na ladainha, e muito bonita; Mostra que Maria exerce a misericórdia em relação aqueles que sofrem em seus corpos para curar a alma, e que em seguida os consola nas aflições e os fortifica no meio das dificuldade que têm para superar. Nada nas criaturas é ao mesmo tempo mais elevado e mais acessível a todos, mais prático e mais doce para nos reerguer.

Saúde dos enfermos

A Santíssima Virgem é a saúde dos enfermos pela suas inúmeras curas providenciais ou mesmo verdadeiramente milagrosas, obtidas por sua interseção em tantos santuários da cristandade ao curso dos séculos e de nossos dias. O número incalculável dessas curas é tal que se pode dizer que Maria é um mar insondável de curas milagrosas. Mas ela só cura o corpo para trazer remédio as enfermidades da alma.

Cura principalmente as quatro feridas espirituais, que são as conseqüências do pecado original e de nossos pecados pessoais, feridas da concupiscência, imperfeições, ignorância e malícia.

Cura a concupiscência ou a cobiça que está na sensibilidade, amortecendo o ardor das paixões, quebrando os hábitos criminosos. Faz com que o homem comece a queres mais fortemente o bem para afastar os maus desejos e também fique insensível a embriagues das honras e o atrativo das riquezas. Assim ela cura “a concupiscência da carne e a dos olhos”.

Traz remédio às feridas das imperfeições que é a fraqueza em relação ao bem, a preguiça  espiritual. Ela dá a vontade a constância para aplicar a virtude, e desprezar os atrativos do mundo para se lançar nos braços de Deus. Fortalece os que titubeiam, reergue os que caem.

Dissipa as trevas da ignorância, fornece os meios para abandonar o erro. Lembra as verdades religiosas, ao mesmo tempo, tão simples e tão profundas exprimidas no Padre Nosso. Com isso esclarece a inteligência e a eleva a Deus. Santo Alberto o Grande que dela recebera a luz para perseverar em sua vocação e superar as armadilhas do demônio, disse muitas vezes que ela nos preserva dos desvios que tira a retidão e a firmeza do julgamento, que nos cura da lassidão na procura da verdade, e que nos leva a um conhecimento saboroso das coisa divinas. Ele mesmo, em seu Mariale, fala de Maria com uma espontaneidade, uma admiração, um frescor, uma abundância que raramente se encontra em um homem de estudo.

Enfim ela cura a ferida espiritual da malicia, compelindo para Deus as vontades rebeldes, tanto com ternos avisos, como com repreensões severas. Por sua doçura detém os desatinos da cólera, por sua humildade abafa o orgulho e afasta as tentações do demônio. Inspira os homens para que renunciem a vingança e se reconciliem com seus irmãos, fazendo-os entrever a paz que se encontra na casa de Deus.

Em uma palavra, ela cura o homem das feridas do pecado original agravadas pelos nossos pecados pessoais.

Algumas vezes, essas curas espirituais são milagrosas por serem imediatas como aconteceu com o jovem Afonso Ratisbonne, israelita, muito afastado da fé católica, que por curiosidade visitava a igreja de Santo André delle Frate em Roma, e a quem a Santa Virgem apareceu como está representada na medalha milagrosa, com os raios de luz que saiam de suas mãos. Com bondade lhe fez sinal para que se ajoelhasse . Ele se ajoelhou, perdeu os sentidos e quando voltou a si, exprimiu o vivo desejo que sentia de receber o batismo o mais cedo possível. Mais tarde ele fundou com seu irmão que se convertera antes dele, os Padres de Sion e as Religiosas de Sion para rezarem, sofrerem e trabalharem pela conversão dos judeus, dizendo todos os dias na missa: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”.

É aí que Maria se mostra esplendidamente saúde dos enfermos.

Refúgio dos pecadores

Maria é o refugio dos pecadores porque é a mãe dos pecadores e é santíssima. Justamente porque detesta o pecado que assola as almas, longe de abominar os próprios pecadores, os acolhe, os convida ao arrependimento. Livra-os das cadeias dos maus hábitos pelo poder de sua intercessão. Obtém sua reconciliação com Deus, pelos méritos de seu Filho lembrando-os em favor dos pecadores.

Em seguida protege os pecadores convertidos dos demônios, contra tudo que pode leva-los a recaída. Exorta-os a penitência e faz-lhes encontrar a doçura.

É a ela, depois de Nosso Senhor, que todos os pecadores que se salvam devem sua salvação. Ela já converteu inúmeros deles principalmente nos lugares de peregrinação, em Lourdes onde ela disse: “Rezai e façam penitência”; e mais recentemente em Fátima, em Portugal, onde o número de conversões, desde 1917, é incalculável.

Muitos criminosos no momento do último suplício lhe devem a conversão in extremis.

Suscitou as ordens  religiosa votadas à oração, à penitência e ao apostolado para a conversão dos pecadores, as ordens de são Domingos, de são Francisco, dos Redentoristas, dos Passionistas e muitas outras.

Quais são os pecadores que ela não protege? Apenas aqueles que desprezam a misericórdia de Deus e atraem sua maldição. Ela não é o refugio de quem persevera no mal, o blasfemo, o perjúrio, a magia, a luxúria, a inveja, a ingratidão, a avareza, o orgulho do espírito. Mas como Mãe de misericórdia, lhes envia de tempos em tempos graças de luz e de atração e se não resistem, serão conduzidos de graça em graça até a graça da conversão. Sugere para alguns por sua mãe que está morrendo que digam ao menos todos os dias uma Ave Maria; muitos sem mudar suas vidas, disseram essa prece que exprimia neles uma fraca veleidade de conversão, e chegado o último momento foram recolhidos a um hospital onde lhes perguntaram se quereria ver um padre para receber a absolvição; recebem-na como os operários da última hora chamados e salvos por Maria. Depois de quase dois mil anos, Maria é, assim, o refugio dos pecadores.

Consoladora dos aflitos

Maria foi consoladora dos aflitos, desde sua vida terrestre. Em relação a Jesus, sobretudo no Calvário. Depois da Ascensão, em relação aos apóstolos, no meio das imensas dificuldades que encontraram para a conversão do mundo pagão, Maria lhes obtinha de Deus o espírito de força e uma santa alegria no sofrimento. Durante a lapidação de santo Estevão, primeiro mártir, ela devia assisti-lo espiritualmente por suas preces. Tirava os infelizes de seu abatimento, lhes obtinha a paciência para sofrer a perseguição. Vendo tudo o que ameaçava a igreja nascente, resistia firme, guardando um rosto sereno, expressão da tranqüilidade de sua alma, de sua confiança em Deus. A tristeza nunca tomava conta de seu coração. O que conhecemos da força de seu amor a Deus faz pensar, dizem os autores piedosos, que ela permanecia alegre nas aflições,  que não se lamentava na indigência e na privação, que as injurias não podiam embaciar as graças de sua mansidão. Somente por seu exemplo confortava muitos infelizes acabrunhados de tristeza.  Suscitou muitos santos que foram como ela, consoladores dos aflitos, tais como santa Genoveva, santa Isabel, santa Catarina de Sena, santa Germana de Pibrac.

O Espírito Santo é chamado consolador sobre tudo porque nos faz verter lágrimas de contrição que lavam nossos pecados e nos restitui a alegria da reconciliação com Deus. Pela mesma razão, a Santa Virgem é a consoladora dos aflitos, fazendo-os chorar santamente suas faltas.

Não somente ela consola os pobres com o exemplo de sua pobreza e com seu socorro, mas  está particularmente atenta a nossa pobreza escondida,  compreende a privação secreta do coração e nela nos assiste. Maria tem a inteligência de todas as nossas necessidades e dá o alimento do corpo e da alma aos indigentes que a ela imploram.

Quantos cristãos não consolou nas perseguições, quantos possessos ou almas tentadas  livrou, quantos náufragos não salvou da angustia; quantos moribundos assistiu e fortificou lhes lembrando os méritos infinitos de seu Filho.

Ela vai também adiante da almas depois da morte. São João Damasceno diz em seu sermão sobre a Assunção: “Não foi a morte, ó Maria, que a tornou bem-aventurada, fostes vós que a embelezou e a tornou graciosa, desembaraçando-a do que tinha de lúgubre.”

Ela ameniza os rigores do purgatório e providencia para os que sofrem as orações dos fieis a quem inspira para mandarem celebrar missas pelos defuntos.

Enfim, como consoladora dos aflitos, Maria, soberana sem restrições, faz sentir de certo modo sua misericórdia até no inferno. Santo Tomás diz que os condenados são punidos menos do que merecem,“puniuntur citra condignum”, pois a misericórdia divina se une sempre à justiça mesmo em seus rigores. E esse alívio provem dos méritos do Salvador e os de sua santa Mãe. Segundo santo Odilon de Cluny, no dia da Assunção o inferno é menos penoso do que nos outros dias.

Consoladora  dos aflitos, ela o é no curso dos séculos nas formas mais variadas segundo a extensão do conhecimento que tem da aflição das almas humanas em seus estados da vida.

Socorro dos cristãos

Maria é enfim o socorro dos cristãos porque o socorro é o efeito do amor e Maria é a plenitude da consumação da caridade, que ultrapassa a de todos os santos e anjos reunidos.

Ela ama as almas resgatadas por seu Filho mais do que se poderia dizer, ela as assiste em sua penas e as ajuda na prática de todas as virtudes.

Daí a exortação de são Bernardo em seu segundo sermão sobre o Missus est: “Se o vento da tentação se levanta contra ti, se a torrente das tribulações procura levar te, olhai a estrela, invocai Maria. Se as ondas do orgulho e da ambição, da maledicência e do ciúme te sacodem para tragar te em seus turbilhões, olhai a estrela, invocai a Mãe de Deus. Se a cólera, a avareza ou os furores da concupiscência zombam do frágil navio de teu espírito e ameaçam quebrá-lo, voltai teu olhar para Maria. Que a sua lembrança não se afaste jamais de teu coração e que seu nome se encontre sempre em tua boca...Mas para aproveitar do benefício de sua prece, não esqueça que deves andar sobre suas pegadas.”

Ela sempre foi o socorro não só das almas individuais, como dos povos cristãos. Pelo testemunho de Baronius, Narses, o chefe dos exércitos do imperador Justiniano, com a ajuda da Mãe de Deus, livrou a Itália, em 553, de se subjugar aos Gotos de Totila. Segundo o mesmo testemunho, em 718, a cidade de Constantinopla foi livrada dos Sarracenos, que em diversas ocasiões semelhantes foram derrotados pelo socorro de Maria.

Ainda no século XIII, Simão, conde de Monfort, abateu perto de Toulouse um considerável exército de albigenses enquanto que são Domingos rezava para a Mãe de Deus.

A cidade de Dijon foi da mesma forma, miraculosamente libertada.

Em 1571, a 7 de outubro, em Lepanto, na entrada do golfo de Corinto, com o socorro de Maria obtido pelo Rosário, uma frota turca bem mais numerosa e mais poderosa do que a dos cristãos foi completamente destruída.

O título de Nossa Senhora das Vitórias nos lembra que muitas vezes nos campos de batalha sua intervenção foi decisiva para livrar os povos cristãos oprimidos.

* * *

Nas ladainhas de Loreto, essas quatro invocações: saúde os enfermos, refúgio dos pecadores, consoladora dos aflitos, socorro dos cristãos lembram incessantemente aos fiéis que Maria é a Mãe da divina graça, e por isso Mãe de misericórdia.

A Igreja canta que ela é também nossa esperança: “Salve Regina, Mater misericordiae, vita, dulcedo et spes nostra, salve.” Maria é nossa esperança, na medida do que mereceu com seu Filho e por ele o socorro de Deus, que nos adquire por sua interseção sempre atual e que nos transmite. É, assim, a expressão viva e o instrumento da Misericórdia auxiliadora que é o motivo formal de nossa esperança. A confiança ou a esperança apoiada a uma “certeza de tendência para a salvação”que não cessa de aumentar, e que deriva de nossa fé na bondade de Deus todo poderoso, pronto para socorrer, na fidelidade de suas promessas; donde nos santos, o sentimento quase sempre atual de sua Paternidade que incessantemente vela por nós. A influência de Maria, sem ruído de palavras, nos incita progressivamente a essa confiança perfeita  nos manifestando cada vez melhor o motivo.

A Santíssima Virgem é mesmo chamada “Mater sanctae laetitiae” e “causa nostrae laetitiae”, causa de nossa alegria. Ela obtém para as almas mais generosas esse tesouro escondido que é a alegria espiritual no meio dos próprios sofrimentos. Ela lhes obtém de vez em quanto levar suas cruzes com alegria seguindo o Senhor Jesus; ela as incita no amor a cruz, e sem fazê-las sentir sempre essa alegria, lhes proporciona comunica-la aos outros.

Na festa do Santo Rosário da Santíssima Virgem.

(Extraído do livro A Mãe Do Salvador e Nossa Vida Interior)

O Progresso Espiritual em Maria

O progresso espiritual é antes de tudo o progresso da caridade, que inspira e anima as outras virtudes – cujos atos se tornam meritórios, de forma tal que as virtudes infusas, que são conexas da caridade, se desenvolvem na proporção daquele progresso, como na criança crescem ao mesmo tempo os dedos da mão.

Convém saber o porquê e o como do desenvolvimento constante da caridade em Maria e o ritmo dessa progressão. O método que seguimos nos obriga a insistir nos princípios que remetem à firmeza e à elevação da Mãe de Deus, de molde a em seguida aplicá-los com segurança à sua vida.

 A aceleração do progresso na Santíssima Virgem

 Por que deveria a caridade crescer nela sem parar até a morte?

 Antes do mais, porque tal crescimento é conforme à natureza da caridade no caminho para a eternidade e também ao preceito supremo: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento”, de acordo com a gradação ascendente expressa em Deuteronômio 6, 4 e em São Lucas 10, 27. Segundo tal preceito, soberano entre os preceitos e superior aos conselhos, os cristãos – cada qual conforme sua condição – devem tender à perfeição da caridade e das outras virtudes, quer no estado matrimonial, quer no estado religioso ou na vida sacerdotal. 
Nem todos são chamados à prática dos três conselhos, mas hão de aspirar ao espírito deles, que é o espírito do desapego aos bens terrenos e a si mesmo, para que se avulte o apego a Deus. Só em Nosso Senhor não existe tal aumento ou progresso da graça e da caridade, pois que recebera desde o instante da concepção a plenitude absoluta, conseqüência da união hipostática (afirma o 2º Concílio de Constatinopla que Jesus não melhorou por meio do progresso das boas obras, não obstante tivesse cumprido sucessivamente os atos de virtude correspondentes às diferentes idades da vida).

Maria, ao contrário, durante a vida terrena se tornou cada vez melhor. Mais ainda, houve nesse progresso uma aceleração maravilhosa, segundo o princípio que formulou S. Tomás acerca desta palavra da Epístola aos Hebreus 10, 25: “Animemos uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia (final).” 
Nesse trecho, escreve o Doutor Angélico no Comentário à epístola: “Poderia alguém perguntar: ‘Por que progredimos mais e mais na fé e no amor?’ 
A resposta é que o movimento natural (ou conatural) se torna tanto mais rápido quando mais se aproxima do termo (do fim que o atrai). Para o movimento violento, já é o inverso. (De fato dizemos atualmente: a queda dos corpos tem aceleração uniforme, ao passo que o movimento inverso – o da pedra lançada ao ar na vertical– tem desaceleração uniforme). Ora, continua S. Tomás, a graça aperfeiçoa e inclina ao bem, segundo o caminho da natureza (à semelhança de segunda natureza); segue-se daí que aqueles que estão em estado de graça devem portanto crescer em caridade na medida em que se aproximam do fim último (que os atrai). Por isso se diz na Epístola aos Hebreus 10, 25: ‘Não abandonemos as assembléias, mas animemos uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia (final)’, i. e., o termo da viagem. Diz-se alhures: ‘A noite está quase passada, o dia se aproxima’ (Rm 13, 12). ‘A vereda dos justos é como luz que resplandece, vai adiante e cresce até ao dia pleno’ (Pr 4, 18).

 Faz S. Tomás, antes da descoberda da lei da gravitação universal, essa observação profunda de locução simples, quando só de modo mui imperfeito se conhecia – sem havê-la medido – a aceleração dos corpos; ele percebera nisso um símbolo do que havia de ser a aceleração do progresso do amor a Deus na alma dos santos que gravitam na órbita do sol dos espíritos e da fonte de todo o bem. Quer afirmar o santo doutor que, para os santos, na medida em que se acentua a intensidade da vida espiritual e a presteza e a generosidade com que eles se dirigem a Deus, tanto mais se aproximam Daquele que os vai atraindo mais e mais para Si. Eis a lei da atração universal na ordem espiritual. Assim como se atraem os corpos na razão direta da massa e na razão inversa do quadrado da distância, i. e., na medida em que se aproximam, assim atrai Deus as almas dos justos, na medida em que se aproximam Dele.

 Eis a razão de a trajetória do movimento espiritual da alma dos santos elevar-se até ao zênite e daí não declinar; para eles não há crepúsculo: na velhice, só se lhes enfraquecem o corpo e as faculdades sensíveis. Eis então o progresso do amor na vida dos santos. Eles progridem, como é manifesto, muito mais rápido nos últimos que nos primeiros anos de vida. Em espírito caminham a marche-marche, malgrado a pesadez da velhice – “renova-se, como a da águia, a sua juventude” (Sl 102, 5).

 Vê-se tal progresso cada vez mais célere, sobretudo na vida da Santíssima Virgem na terra, pois nela não havia sombra de vississitude, interrupção ou morosidade, nem delongas em coisas da terra ou em si mesma. E era tão mais intenso esse progresso em Maria quanto maior era a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em Maria (sobretudo se pela ciência infusa, como é provável, ela se guardara do uso da liberdade e do mérito durante o sono) uma aceleração maravilhosa do amor a Deus, aceleração cuja imagem longínqua é a gravitação dos corpos.

 Ensina a física moderna que se a velocidade da queda dum corpo no primeiro segundo é 20, no segundo segundo há de ser 40, no terceiro 60, no quarto 80, no quinto 100. É o movimento acelerado uniforme, símbolo do progresso espiritual da caridade na alma que, sem óbices, se dirige tanto mais rápido a Deus, na medida em que se aproxima Daquele que a vai atraindo para Si. Assim é normal que nessa alma cada comunhão espiritual ou sacramental seja dum fevor mais fervoroso que o precedente e por isso mais frutífero. Em oposição, a pedra lançada ao ar na vertical, em movimento desacelerado uniforme até que caia, simboliza o progresso da alma tíbia, sobretudo se o apego progressivo ao pecado venial lhe torna as comunhões cada vez menos fervorosas ou lhe diminui dia após dia a devoção substancial da vontade.

 Demonstram-nos tais princípios o que é o progresso espiritual em Maria desde o instante da Imaculada Conceição, sobretudo se nela se interrompeu, como é provável, o uso do livre-arbítrio já no ventre materno. Ademais, como parece certo que a plenitude inicial da graça em Maria já superasse a graça final dos santos todos reunidos, a aceleração da marcha ascendente em direitura a Deus supera tudo quanto possamos dizer.

 Nada a retardaria, nem as feridas do pecado original, nem o pecado venial, nem negligência ou distração, nem imperfeição, pois que estava ela sempre presta a seguir a inspiração dada em forma de conselho. Eis uma alma que, após o mais perfeito dos votos, seria plenamente fiel a ele. Deveria Sant’Ana ser apossada da perfeição singular de sua filha santa; todavia não podia ela suspeitar que se tratava da Imaculada Conceição, nem que chamariam Maria a Mãe de Deus. Era a filha sua muitíssimo mais amada de Deus que poderia Sant’Ana conceber. Guardadas as proporções, Deus ama cada justo mais que poderia cada justo conceber; para sabê-lo, seria mister conhecer plenamente o valor da graça santificante, gérmen da glória; e para conhecer o valor do gérmen espiritual em sua inteireza, seria mister haver gozado um instante da beatitude celeste, assim como para conhecer o valor do gérmen na pinha, é mister haver contemplado o roble pujante, que nasce dum tão pequeno gérmen. Amiúde estão contidas em sementes quase imperceptíveis as grandes coisas, qual um grão de mostarda ou um rio imenso que brota dum filete tênue.

 O progresso espiritual em Maria pelo mérito e pela oração 

Devia então a caridade crescer na Santíssima Virgem sem interrupções, conforme ao supremo preceito do amor. Mas como se deu o aumento? Por meio do mérito, da oração e da comunhão espiritual com o Deus presente em espírito na alma de Maria, desde o início da existência dela. 

Força é recordar que, antes de tudo, não aumenta a caridade em extensão pois, ainda que em ínfimo grau, aquela virtude já ama a Deus – com amor de estima – acima de tudo e ao próximo como a si mesmo, sem acepção de pessoa, não obstante mais tarde a devoção estender-se de modo progressivo. Cresce a caridade mormente em intensidade, radiculando-se mais e mais nossa vontade adentro, ou para falar sem metáfora, determinando com maior força a inclinação da vontade no afastar-se do mal e do menos bom e no comportar-se com generosidade ante Deus. Há um crescimento da ordem, duma ordem que não é quantitativa, como a dum montão de trigo, mas qualitativa, como quando se torna mais intenso o calor ou quando a ciência, sem novas conclusões, se torna mais penetrante, profunda, unificada e certa. 

Assim tende a caridade a amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo – com maior perfeição, pureza e força – para que glorifiquemos a Deus no tempo e na eternidade. Destarte sublinha-se, acima de todo motivo secundário ou acessório no qual antes se detinha, o objeto formal e o motivo formal da caridade, bem como os das outras virtudes. De ínicio se ama a Deus por conta dos benefícios recebidos e esperados, e não tanto por Si mesmo; após, entra-se na consideração de que o benfeitor é em si um bem melhor que os bens que Dele dimanam, merecendo o amor por Si mesmo, em razão de Sua bondade infinita.

Aumenta-nos a caridade como a uma qualidade, qual o calor que se intensifica, e assim de modos muito vários, quer pelo mérito, quer pela oração, quer pelos sacramentos. Com maior razão fez as três coisas Maria, sem sombra de imperfeição. O ato meritório procedente da caridade ou da virtude que a caridade inspira dá direito a uma recompensa sobrenatural e, antes do mais, ao aumento da graça habitual e da mesma caridade. Não produzem os atos meritórios, por si próprios e de modo direto, o aumento da caridade, pois que não é virtude adquirida que se produza ou aumente com a repetição dos atos, mas é virtude infusa. Como só Deus pode produzi-la, já que é participação na Sua íntimidade, somente Ele pode aumentá-la. Por isso diz São Paulo: (1 Cor 3, 6-9): “Eu plantei (com a pregação e o batismo), Apolo regou, mas quem faz crescer é Deus.”; (2 Cor 9, 10): “Ele fará crescer os frutos da vossa justiça.”

Se não podem os atos de caridade produzir o aumento dessa virtude infusa, entretanto concorrem para esse aumento de duas maneiras: moralmente, ao merecê-las; e fisicamente, na ordem espiritual, ao nos dispor a recebê-las. Tem a alma por mérito seu receber o crescimento que há de fazê-la amar a Deus com mais força e pureza; dispõe-se a alma a receber tal crescimento, de molde a que os atos meritórios aprofundem e dilatem as faculdades superiores, para que o divino possa mormente penetrá-las e, purificando-as, elevá-las. Mas nos acontece amiúde que os atos meritórios restam imperfeitos – remisso, dizem os teólogos, ou remitentes (tal como se diz calor remitente ou fervor remitente), i. e., inferior ao patamar da virtude da caridade que está em nós.

Na posse duma caridade de três talentos, é comum acontecer de agirmos como se apenas houvéssemos dois, qual um homem atilado que por negligência só aplicasse mui de leve a inteligência. São ainda meritórios esses atos de caridade imperfeita ou remitente, mas segundo S. Tomás e os antigos teólogos, não obtêm eles os aumentos de caridade que mereceriam, pois que se não dispõem a recebê-los. 

Quem tiver uma caridade de três talentos e opera como se apenas tivesse dois, não se dispõe a contento para receber o aumento dessa virtude até aos quatro talentos. Só há de obtê-lo à consecução dum ato mais generoso ou intenso dessa virtude ou dessoutras virtudes inspiradas ou governadas pela caridade.

Esclarecem deveras tais princípios o que foi em Maria o progresso espiritual por meio dos méritos próprios. Nela jamais houve ato imperfeito ou remitente: seria isso imperfeição moral ou generosidade contida ao serviço de Deus. Os teólogos, como vimos, são todos acordes em negar a ela essa imperfeição. Por isso seus méritos obtêm tão logo o aumento da caridade merecida. Ademais, para melhor avaliar o valor dessa generosidade, é mister recordar – de acordo com o ensinamento comum – que maior é a glória de Deus por um só ato de caridade de dez talentos que por dez atos de caridade de um talento só. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo praz mais a Deis que muitos que reunidos permaneçam em relativa mediocridade ou tibieza.

Supera a qualidade à quantidade, sobretudo nesse domínio espiritual. Eram os méritos de Maria mais que perfeitos. Seu coração puríssimo dilatava-se mais e mais e alargava-se a capacidade divina nela, segundo a palavra so Sl 118, 32: “Correrei pelo caminho dos teus mandamentos, quando me dilatares o coração.” Enquanto ficamos esquecediços de que somos viajantes no caminho da eternidade e desejamos nos instalar na vida presente como se fosse ela durar para sempre, Maria tinha os olhos fitos no fim último da viagem, em Deus. Não perdia um minuto do tempo que lhe era concedido. Cada instante de vida terrestre adentrava no instante único da imobilidade eterna pela via dos méritos acumulados e cada vez mais perfeitos. 

Ela analisava os momentos da própria vida, não apenas pela linha horizontal do tempo que marca o devir terrestre, mas pela linha vertical que os remete ao instante eterno e impassável. Além disso, força é notar que, como ensina S. Tomás, na realidade concreta da vida não existe ato deliberado indiferente; ainda se assim fosse (i. e., moralmente nem bom nem mau), o mesmo objeto da ação – como sair a passeio ou ensinar matemática – tornaria esse ato moralmente bom ou mau, por conta do fim a que se propõe, pois que sempre deve um ser racional agir por um motivo racional, um fim honesto, e não somente deleitável ou útil. Segue-se que numa pessoa em estado de graça o ato deliberado que não seja mau, nem pecado, é bom; por conseguinte, está ele de modo virtual ordenado a Deus como ao fim último do justo, logo seu ato é meritório. “In habentibus caritatem omnis actus est meritorius vel demeritorius”.

Daí resulta que em Maria os atos deliberados eram bons e meritórios; no estado de vigília, nela não houve ato indeliberado ou puro maquinismo que se produzisse independente da direção da inteligência e da influência da vontade vivificada na caridade.

É à luz da claridade desses princípios que se deve considerar os principais momentos da vida terrena de Maria; como falássemos aqui daqueles lanços que precederam a Encarnação do Verbo, pensemos na apresentação ao tempo, quando era ela ainda uma criança, e no que fizera ao assistir às festas solenes, nas quais se liam as profecias messiânicas – mormente as de Isaías – aumentando-lhe a fé, a esperança, o amor a Deus e ao Messias esperado e prometido. Como ela não devia penetrar no sentido destas palavras do profeta Isaías (Is 9, 6) acerca do Salvador vindouro: “Um menino nasceu para nós, e um filho nos foi dado e foi posto o principado sobre o seu ombro; e será chamado Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncepe da paz”. A fé viva da infanta Maria, já de si tão elevada, talvez vislumbrasse a esta palavra: “Deus forte”, mais que o mesmo Isaías jamais vislumbrara. Já penetrava Maria na verdade que haveria de residir em plenitude de forças no seio Daquela criança – a de que o Messias seria um rei eterno, não conheceria a corrupção e adotaria seu povo na qualidade de pai eterno.

Não cresce a vida da graça apenas pelo mérito, mas também pela oração, que tem força impetratória distinta. Assim todos os dias pedimos para que nos cresça o amor a Deus, dizendo: “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha a nós o vosso reino (em nós, cada vez mais), seja feita a vossa vontade (que observemos vossos preceitos cada vez melhor)”. Na missa dizemos com a Igreja: “Da nobis, Domine, fidei, spei et caritatis augmentum” – aumentai-nos, Senhor, a fé, a esperança e a caridade” (13º domingo depois de Pentecostes).

Após a justificação, pode o justo conseguir o crescimento da vida da graça – como um direito à recompensa – pelo mérito, que se liga à justiça divina, e pela oração, que se dirige à infinita misericórdia. E tanto mais eficaz é a oração quanto mais humilde, confiante e perseverante, desde que requeira antes do mais não bens temporais, mas o aumento das virtudes, segundo esta palavra: “Buscai antes o reino de Deus e sua justiça, e o restante vos será dado em acréscimo”. Obtém amiúde a oração fervorosa do justo, por sua vez impetratória e meritória, mais que merece, i. e., não tão-somente o aumento de caridade merecido, mas aquele que se obtém por meio da força impetratória duma oração distinta daquela meritória.

 No silêncio da noite, a oração fervorosa de imprecação e mérito consegue instante um aumento de caridade, o que nos faz experimentar o quão imensa é a bondade de Deus; nisso há comunhão espiritual e a certeza da existência dum salvador de vida eterna. Ora, era a oração da infanta Maria não apenas meritória, mas duma tal força impetratória que não há medida proporcionada à sua humildade e confiança, nem à perseverança de sua generosidade ininterrupta e sempre em progresso. Lograva ela, conforme a esses princípios certos, um amor puríssimo e fortíssimo a Deus. 
Lograva também as graças atuais eficazes que o mérito não alcança – ao menos o mérito de condignidade, como aquele que leva a novos atos meritórios e à inspiração especial, que é o princípio da contemplação infusa, por meio dos dons. Era o que acontecia quando Maria dizia em oração estas palavras do Livro da Sabedoria 7, 7: “Invoquei o Senhor e veio sobre mim o espírito da sabedoria. E preferi-a aos reinos e aos tronos, e juguei que as riquezas nada valiam em sua compração. Nem pus em paralelo com ela as pedras preciosas, porque todo ouro em sua comparação é um pouco de areia, e a prata será considerda como lodo à sua vista” Vinha o Senhor nutri-la de Si mesmo e a cada dia se oferecia a ela com mais intimidade, levando-a a oferecer-se com perfeição.

 Disse ela estas palavras do Sl 26, 4 com maior propriedade que ninguém, senão Jesus: “Unam petii a Domino hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini” “Só uma coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que habite na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor”. Dia após dia descortinava-se a Maria a bondade infinita de Deus para os que o buscam, e mais ainda para os que o encontram. Antes da instituição da Eucaristia, e mesmo antes da Encarnação, em Maria houvera a comunhão espiritual, que é a oração intimíssima da alma na vida unitiva, em que ela regozijava de Deus nela como num templo espiritual: “Gustate et videte quoniam suavis est Dominus – Provai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33, 9).

 Se era dito no Sl 41, 2: “Assim como suspira o cervo pelas fontes de águas, assim suspira minh’alma por ti, ó Deus. Minh’alma tem sede de Deus, de Deus vivo”, que houvera de ser a sede espiritual da Santíssima Virgem no instante da Concepção Imaculada até ao da Encarnação. Não mereceu ela a maternidade divina, pois senão mereceria por si a Encarnação; mas mereceu o grau de santidade e caridade que era a disposição próxima à maternidade divina. Ora, se a disposição remota, que era a plenitude inicial da graça, excedia a graça final dos santos todos reunidos, que pensar da perfeição da disposição próxima!

 Os anos que viveu Maria no Templo atuaram nela o desenvolvimento da “graça das virtudes e dos dons” em proporções inimagináveis, segundo uma progressão e aceleração tais que excedem de muito as das almas mais generosas dos maiores santos. Pode haver exagero no atrbuir à Santíssima Virgem uma perfeição que só pertence a seu Filho mas, nos termos do que lhe é próprio a ela, não saberíamos lobrigar a elevação do ponto de partida do progresso espiritual em Maria, e ainda menos a elevação do ponto de chegada. Entretanto, todo o dito até aqui nos prepara a apreender o que fora o aumento considerável da graça e da caridade que se produziu nela no momento da Encarnação.

Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.
[ La vie spirituelle n° 255, juillet 1941]

Os mistérios do Rosário à luz do princípio da Plenitude da Graça em Jesus e em Maria


MISTÉRIOS GOZOSOS

1. — A ANUNCIAÇÃO    

"Ave, gratia plena" (Lc 1, 28). Desde o instante de sua concepção imaculada, Maria recebeu a graça com tamanha plenitude inicial, que excedeu a de todos os santos e anjos reunidos, como um único diamante vale mais do que um punhado de outras pedras preciosas; e como um fundador de Ordem é superior a seus filhos pela inspiração especial que recebeu. Esta plenitude de fé, de esperança, de caridade, que, em Maria, pelos seus méritos, não cessou de crescer, lhe foi dada em virtude de sua missão, única no mundo, de mãe de Deus; em virtude de sua maternidade divina, que ultrapassa a ordem da graça e atinge, de um certo modo, a ordem hipostática, constituída pela união pessoal da humanidade de Jesus ao Verbo de Deus. É este mistério da Encarnação aqui anunciado a Maria. Sob a luz de Deus ela diz seu Fiat com uma grande fé, uma grande paz e também com uma grande coragem, pois pressente para seu Filho os sofrimentos anunciados pelos profetas; e serão seus também os sofrimentos de seu Filho. Depois deste Fiat, no momento em que se realiza o mistério da Encarnação, a vinda do Verbo aumenta consideravelmente, em Maria, a plenitude inicial de caridade; assim, a Virgem participa, mais do que ninguém jamais participará, dos efeitos que produz na santa alma do Cristo a plenitude ainda superior, que ela recebe no momento mesmo da Encarnação. O Verbo se encarna para nos salvar, morrendo por nós na cruz; na sua santa alma e na alma de Maria a plenitude de graça produz então dois efeitos aparentemente contraditórios mas intimamente unidos, a mais profunda paz que deverá irradiar-se sobre nós, e um desejo da Cruz que se revelará mais e mais até a hora do Consummatum est.

2. — A VISITAÇÃO  

 Maria saudou Isabel e, como diz São Lucas (1, 41), quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança que ela trazia estremeceu em seu seio e ela ficou cheia do Espírito Santo. Elevando a voz, exclamou: "Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre. E donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo? Porque, logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino exultou de alegria no meu ventre."
Maria, que vai dar luz a N. S., leva a graça a Isabel e ao precursor que vai nascer. Maria, ela própria, foi resgatada, de uma maneira absolutamente excepcional, pelos méritos futuros de seu Filho e ela concorre para a redenção de todos nós. No instante de sua concepção imaculada, ela foi resgatada por uma redenção soberana, redenção soberana e preservadora, que o Redentor exerceu, ao menos em relação a uma alma, em relação àquela que deveria associar-se a Ele, mais do que qualquer outra, na obra da salvação dos homens. Neste sentido quis o Senhor que ninguém fosse salvo senão levando em conta os méritos de sua Mãe. Assim Ele quis santificar o Precursor pelas palavras de Maria.

3. — O NASCIMENTO DE JESUS

 A plenitude de graça da Virgem Santíssima cresce com o nascimento do Salvador, quando ela tem a imensa alegria de entregá-lo ao mundo.
 Deixemos as alegrias freqüentemente demasiado humanas, às vezes perigosas, que nos afastariam de Deus, para viver a elevada e puríssima alegra da Boa Nova do Evangelho. O anjo disse aos pastores que à noite guardavam seus rebanhos: "Não temais, porque eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo. É que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo, o Senhor." A alegria do mistério da Encarnação é a da presença real de Deus entre nós, de Deus que vai continuar a viver no meio de nós na Eucaristia. "Gloria in excelsis Deo, et in terra pax hominibus bonae voluntatis" (Lc 2, 14). É o primeiro efeito da plenitude da graça que começa a brilhar sobre nós.

4. — APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO

 No dia da Anunciação Maria tinha dito seu Fiat com paz e grande alegria; mas, também, na dor, pois pressentia os sofrimentos do Salvador, tão claramente anunciados por Isaías. Esta dor aumenta hoje, quando a Virgem Santa é diretamente esclarecida pela profecia do velho Simeão, que prediz de um modo bem claro: "Eis que este (Menino) está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo da contradição. E uma espada traspassará a tua própria alma, afim de se descobrirem os pensamentos escondidos nos corações de muitos." (Lc 34, 35)
 Maria, apresentando seu Filho no Templo, oferece-o por nós na dor; este sofrimento está, entretanto, intimamente unido à alegria profunda que ela sente ouvindo as palavras de paz de Simeão: "Agora, Senhor, deixas partir o teu servo em paz, segundo a tua palavra; porque os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparaste ante a face de todos os povos; luz para iluminar as nações, e glória de Israel, teu povo." (Lc 2, 29, 32)

5. — JESUS É ENCONTRADO NO TEMPLO

 Nosso Senhor diz à sua Santa Mãe e a José: "Por que me procuráveis? Não sabieis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?" Maria aceita, na obscuridade da fé, o que ainda não podia compreender; progressivamente o mistério da Redenção ser-lhe-á revelado em toda a sua profundidade e em toda a sua extensão. É uma alegria reencontrar Jesus, mas esta alegria faz pressentir muitos sofrimentos.
Da mesma maneira, a história da vida das almas começa com a alegria que nos traz o desejo do fim último apenas entrevisto, mas logo em seguida N. S. nos faz compreender que para atingi-lo é preciso percorrer ásperos e difíceis caminhos. Assim, deve haver três grandes atos na vida de uma alma: o desejo jubiloso da beatitude do céu; a escolha, constantemente renovada, dos meios, às vezes dolorosos, que a ele conduzem; a posse do fim alcançado. Esses três grandes atos correspondem aos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. O Rosário é, assim, uma escola de contemplação; ele nos conduz, suavemente, à contemplação viva que dirige a ação.
   
MISTÉRIOS DOLOROSOS

 6. — AGONIA DE JESUS NO HORTO

Nesta tristeza acabrunhante, Jesus mantém-se perfeitamente conformado com a vontade de Deus: "Meu Pai, se for possível, afastai de mim este cálice, mas faça-se a Vossa vontade e não a minha." (Mt 26, 39).

Comparemos às nossas esta tristeza de Jesus. Quantas vezes nossa insensatez nos leva a tristezas sem fundamento? Outra vezes nossos pecados e imprudências trazem conseqüências dolorosas, mas bem merecidas, contra as quais nos irritamos. Para nos purificar, o Senhor às vezes nos envia provações muito penosas que, ai de nós, raramente suportamos bem. Contemplemos nossos dois grandes modelos — Jesus e Maria — e compreenderemos que o verdadeiro mal que nos deve afligir, são os pecados cometidos, com suas conseqüências bem maiores do que pensamos, os pecados que perdem as almas. Nosso Senhor sofreu, na medida de seu amor pelo seu Pai, ofendido e por nós, que o ofendemos.
 Supliquemos-lhe que nos ensine a sofrer de um modo proveitoso para nós e, também, para os outros. Jesus, por seu amor, transformou aquilo que parece mais inútil, a dor, no que há de mais fecundo. Num certo sentido Ele está, até o fim do mundo, em agonia no seu Corpo Místico, no corpo de seus membros que carregam a cruz. Assim como os nossos olhos não podem passar sem a luz do sol, assim o Corpo Místico não pode passar sem o sofrimento reparador, irradiação do sofrimento do Cristo.

 Em Gethsemani, Jesus chorou por nossos pecados, sofreu até o suor de sangue. Peçamos-Lhe a contrição verdadeira e profunda de nossos pecados, as santas lágrimas da contrição das quais Ele disse nas bem-aventuranças: "Beati qui lugente, quonian ipsi consolabuntur."

 7. — A FLAGELAÇÃO

 Jesus expia, pelos seus ferimentos, as vontades criminosas dos homens. Ele é ferido e nós somos curados. Maria, que vê seu Filho flagelado por nós, não é curada, mas preservada por Ele do pecado original e de suas conseqüências acabrunhadoras; é preservada, também, de nossa triste concupiscência. Assim, soberanamente resgatada por Ele, deu-lhe ela este sangue puríssimo que, neste momento, é derramado pelos chicotes dos carrascos para nos curar da concupiscência da carne, que nos afasta de Deus, aflige as famílias e arruína os povos.
Pro peccatis suae gentis
Vidit Jesum in tormentis
Et flagellis subditum.
                       (Stabat Mater)

 8. A COROAÇÃO DE ESPINHOS

 Jesus é coroado de espinhos, por escárnio e por crueldade; mas esta coroa dolorosa, sob a qual Ele expia nossos pecados de orgulho, florescerá em coroa de glória, aquela coroa do Rei dos reis, do Senhor dos senhores. E Maria, vendo-o passar coroado de espinhos, será associada a esta glória. "O Rei a amou com uma predileção única... e sobre sua cabeça depositou o diadema da realeza." (Esther, 2, 17). Antes de associá-la à sua vitória final, Nosso Senhor uniu-a aos seus sofrimentos, na paz interior que, apesar de tudo, permanece no fundo de seus corações e no desejo de imolar-se, num perfeito holocausto, pela salvação dos homens. A paz daquele que é assim coroado de espinhos, não permanece apenas no fundo de sua alma. Irradia-se há dois mil anos sobre todos os que meditam em seus corações na paixão dolorosa, na humildade do Salvador e na da sua Santa Mãe.
 Como diz São Grignion de Montfort, o demônio, que é o orgulho personificado, sofre mais sendo vencido pela humildade de Maria do que se fosse esmagado duma vez pelo Todo Poderoso.
 O humilde Jesus, coroado de espinhos, será elevado acima de todos. "Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso também Deus o exaltou, e lhe deu um nome que está acima de todo o nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho no céu, na terra e no inferno, e toda a língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Padre". (Fl 2, 8).

 9. — JESUS CARREGA A CRUZ.

 "Se alguém quer seguir-me, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me." 
Carreguemos, a nossa cruz, santamente, em união com o Salvador, e encontraremos nela uma doçura verdadeira que o espírito do mundo não pode conhecer. Se não levamos a cruz como devemos é porque nosso desejo de vida eterna não é bastante forte, bastante vivo e intenso. Se recuamos diante da severidade do meio é porque o desejo do fim não é tanto quando deveria ser. É preciso avivar este desejo pedindo à Virgem Santa que o aumente em nós, juntamente com a fé, a esperança e a caridade. Levadas com amor, nossas cruzes serão menos penosas, porém mais meritórias. A caridade é o princípio do mérito e torna mais suave o jugo do Senhor.
 Senhor, transformai as provações que, muitas vezes, nos abatem sem proveito; fazei com que elas nos aproximem do fim almejado e se tornem, para nós e para os outros, um penhor de vida eterna.
 O caminho da cruz nos lembra que não há, como o disse alguém, senão um mal verdadeiro (sobretudo em circunstâncias graves), o de não sermos santos. Temos, ao menos, a certeza absoluta de que não teremos de carregar uma cruz superior às nossas forças, ajudadas pela graça. Estamos certos do nosso guia. Resta-nos, apenas, seguir os seus passos.

 10. — A CRUCIFIXÃO

 Jesus vai morrer no meio dos mais atrozes sofrimentos físicos e morais e com exceção de S. João, todos os apóstolos partiram! A mãe das dores faz, então, o maior ato de fé e de esperança que jamais existiu. O crucificado entretanto tem algo mais que a fé e a esperança. Conserva, mesmo na agonia, a visão da essência divina; mas Ele como que retém esta glória no cimo de sua inteligência, para entregar-se à dor. Parece vencido, sua obra parece destruída, quase todos os discípulos partiram. Maria não cessa, um só instante, de acreditar que Ele é o Salvador, o Verbo de Deus encarnado que ressuscitará ao terceiro dia, conforme predissera. Maria compreende, como ninguém jamais compreenderá, as sete palavras que Ele pronunciou antes da morte. Ela oferece ao Pai este Filho, não apenas querido, mas legitimamente adorado, com todo o amor de que é capaz, e oferece o amor, ainda maior, d'Aquele que morre por nós. Oferecendo-o, deste modo, recebe a plenitude final da graça, que a torna, mais do que nunca, Mãe dos homens, co-redentora e medianeira universal. 
 Maria, deste modo, "carregou a morte de Cristo". Supliquemos-lhe: "Fac ut portem Christi mortem". Peçamos-lhe tornar-nos participantes dos dois grandes efeitos da plenitude da graça: a paz e o desejo da cruz. Que ela nos faça amar a cruz como todos os santos a amaram e nos conceda uma compreensão, sempre mais viva e mais profunda, do mistério da Redenção, e do valor infinito da Missa, que o perpetua sobre nossos altares.
  
MISTÉRIOS GLORIOSOS

11. — A RESSURREIÇÃO  

Jesus venceu a morte, porque, na cruz, venceu o demônio e o pecado. Jesus pôde dizer a seus discípulos: "Venci o mundo" (Jo 16, 33); isto é, venci o espírito do mundo feito de concupiscência e de orgulho. Na ressurreição temos o sinal claro desta vitória. Não é a morte a conseqüência e o castigo do pecado? (Rm 5, 12) A vitória sobre a morte deve ser a conseqüência da vitória sobre o pecado. É isto que faz São Paulo dizer: "E se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, porque ainda permaneceis nos vossos pecados." (1 Cor 15, 17).
 Este é o sentido da ressurreição e dos mistérios gloriosos que a seguem. Os mistérios gozosos falavam da alegria que acompanha o vivo desejo do fim último entrevisto; os mistérios dolorosos lembravam os severos meios que, carregando a cruz, precisamos utilizar dia a dia; os mistérios gloriosos falam do fim último já conquistado.
 Estes mistérios nos introduzem na vida eterna, que é o nosso destino. Nossas alegrias e tristezas devem ordenar-se para esta glória, assim como, para ela, ordenaram-se as alegrias de Maria e do Menino Jesus e a dolorosa Paixão que, a ambos uniu, na oblação do mesmo holocausto. Contemplemos nossos dois grandes modelos e meditemos no dever de imitá-los, todos os dias de nossa vida, tendendo, com generosidade sempre crescente, para o fim ao qual eles nos querem conduzir.

 12. — A ASCENSÃO

 Jesus subiu ao céu, onde, à direita do Pai, reinará, eternamente, sobre as inteligências e sobre os corações. As almas dos justos entrarão com Ele no céu, para, na medida de seus méritos e segundo o seu grau de caridade, gozarem a visão beatífica. Por que a Virgem Santíssima que, ainda na terra, possuía uma caridade tão superior à de todos os santos, não acompanha logo seu Filho? A fim de permanecer ainda na Igreja militante, como o coração que ama, que sofre e que ainda merece, sustentando invisivelmente os Apóstolos nas suas difíceis tarefas. Nosso Senhor priva seus Apóstolos de Sua presença sensível, mas, como consolação, lhes deixa Sua mãe. A Igreja nascente deve seu desenvolvimento aos méritos passados do Salvador e, também, n'Ele, por Ele, com Ele, à prece e ao amor doloroso da Virgem, mãe espiritual de todos os homens.

 13. — PENTECOSTES.

 O Espírito Santo desce sobre a Virgem e os Apóstolos, de modo visível, sob a forma de línguas de fogo. Pensemos nas graças mais uma vez acrescidas à alma de Maria! Como a pedra que, quanto mais próxima está da terra, mais é atraída por ela e mais depressa cai, assim, a alma da Virgem, quanto mais próxima se acha de Deus, tanto mais rapidamente se eleva para Ele. Que aceleração prodigiosa no impulso de seu amor, desde a plenitude inicial, recebida no instante da imaculada conceição, desde a rapidez inicial, que já era superior ao impulso de caridade dos maiores santos! A lei da atração universal dos corpos não é senão um reflexo da lei, incomparavelmente mais elevada, que rege a tendência de todas as criaturas e, sobretudo, de todos os espíritos atraídos por deus. Desde que sigam livremente esta dupla inclinação da natureza e da graça, os espíritos elevam-se a Deus, com um amor cada vez mais intenso, até o momento em que, alcançando-O, chegam ao termo de sua jornada. Quanto mais se aproximam de Deus, mais são atraídos por Ele; é o que se verifica no dia de Pentecostes, na alma dos Apóstolos e, mais ainda, na alma de Maria, pois o impulso de sua caridade não foi retardada por nenhuma falta, nem por imperfeição alguma.
 Se ela não recebeu o caráter sacerdotal, recebeu, contudo, a plenitude do espírito do sacerdócio, que é o espírito do Cristo Redentor, e ela o transmite aos Apóstolos, aos quais sua prece e sua imolação interior vão sustentar nos grandes trabalhos e lutas.
 Pelas mãos da Virgem Santíssima, consagremo-nos ao Espírito Santo, pedindo-lhe que, de futuro, nos faça dóceis às suas tão numerosas e tão preciosas inspirações, as quais freqüentemente dissipamos. Peçamos também apóstolos, valorosas vocações sacerdotais; vocações numerosas, evidentemente, mas, sobretudo, generosas. Mais do que nós, Nosso Senhor deseja perpetuar seu sacerdócio e salvar as almas; muito agradaremos ao seu divino Coração obtendo, por Ele, com Ele e n'Ele, graças eficazes para formar uma elite fiel, que continua valentemente, pelos mesmos meios sobrenaturais, o apostolado dos Doze e o apostolado dos primeiros discípulos do Salvador.

 14. — A ASSUNÇÃO

 A Virgem Santíssima morreu de amor, sua alma foi arrebatada fora do corpo pela força de seu amor a Deus. Mas, assim elevada ao céu, pelo impulso de sua caridade, sua alma não demora em unir-se, novamente, ao corpo, que, não tendo tido nenhum contato com o pecado original, nem com o pecado atual, não deve conhecer a corrupção da carne. Nosso Senhor antecipa, deste modo, para ela, a hora da ressurreição. Associa sua Mãe Santíssima à vitória sobre a morte, porque, no Calvário, mais do que ninguém, ela fora associada à sua vitória sobre o pecado.
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. É pelos méritos de vosso Filho e por vossa intercessão que podemos fazer nossa oração. Fazei-nos compreender que, para os que amam o Senhor e o amam até o fim, tudo concorre para o bem, omnia cooperantur in bonum (Rm 8, 28). Tornai-nos daqueles que o amam assim até o fim; consegui-nos a graça da perseverança final, a graça da boa morte. Veremos, então, que, pela bondade de Deus, pelos méritos de vosso Filho e por vossas preces, tudo em nossas vidas terá sido para o bem. Tudo, as qualidades naturais, os esforços, todas as graças recebidas depois do batismo, todas as absolvições, todas as comunhões, como também todas as quedas, todas as cruzes, todas as contradições e até mesmo os pecados, pois, como diz Santo Agostinho, o Senhor só os permite na vida dos eleitos para conduzi-los a um conhecimento mais profundo de si mesmos, a uma humildade verdadeira, a um reconhecimento maior, depois da absolvição, e a um maior amor.

 15. — A COROAÇÃO DE MARIA NO CÉU

 A Santa Mãe de Deus foi elevada acima dos coros dos anjos: "exaltata est super choros angelorum, ad coelestia regna". Assim como não podemos fazer uma idéia da plenitude final de caridade possuída pela santa alma de Maria, possuída no momento de sua morte, não sabemos, também, determinar a intensidade da luz de glória que ela recebeu, nem a intensidade da visão pela qual, mais do que todos os santos, ela penetra nas profundezas da essência divina. Ela é, assim, Rainha dos Anjos, dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos Mártires, dos Doutores, dos Confessores, das Virgens, Rainha dos todos os santos; ela é, porém, mais mãe do que Rainha.
 Peçamos-lhe, pois, de minuto em minuto, até à morte, a graça necessária ao momento presente. É esta graça que lhe pedimos dizendo: "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora..." Solicitamos, assim, a mais particular das graças, a graça que varia a cada minuto, que nos coloca à altura dos nossos deveres do dia inteiro e que nos faz ver a grandeza de todas as pequenas coisas ligadas, de algum modo, à eternidade. Muitas vezes, dizemos distraídos este agora, mas, Maria, que nos ouve, não está distraída. Acolhe nossa prece e a graça necessária ao minuto presente, para continuarmos a rezar, a sofrer ou a agir, vem a nós, como o ar vem ao peito. Peçamos-lhe a graça de viver toda a riqueza deste minuto que passa, sobretudo na hora da prece. Há uma maneira precipitada, mecânica, anti-contemplativa, de recitar o ofício divino e o Rosário: livrai-nos, Maria, deste gênero de materialismo. Enquanto passa o minuto presente, lembrai-nos de que não é só nosso corpo ou nossa sensibilidade dolorosa ou alegremente impressionada que existe, mas também nossa alma espiritual, o Cristo que influi sobre ela e a Santíssima Trindade que habita em nós. Abandonemos à Misericórdia infinita todo nosso passado bem como nosso futuro e vivamos o momento presente de um modo muito prático e elevado; vejamos neste agora fugidio, seja ele suave, alegre ou penoso, uma imagem longínqua do único instante da eternidade imóvel e, nele, vejamos também uma prova viva, por causa da graça atual que encerra, da bondade paternal de Deus.
 Neste período de nossa vida, digne-se a Virgem Santíssima fazer-nos conhecer as santas exigências do amor de Deus a nosso respeito; elas ultrapassam as dos períodos precedentes, assim como a graça deve crescer em nós até o momento de nossa morte. Deste modo toda a nossa vida será, verdadeiramente, uma marcha e mesmo uma marcha cada vez mais rápida para a eternidade, para Deus que nos atrai a si.

Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.

 (Extr. de "L'amour de Dieu et la Croix de Jesus", trad. e publ. na revista A ORDEM, Out. de 1948)

DOS SERMÕES DE S. TOMÁS DE AQUINO

A SAUDAÇÃO ANGÉLICA 

— A saudação angélica é dividida em três partes: 
A primeira, composta pelo Anjo: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita és tu entre as mulheres. (Lc 1, 28). 

A segunda é obra de Isabel, mãe de João Batista, que disse: Bendito é o fruto do teu ventre. 

A terceira parte, a Igreja acrescentou: Maria 

O Anjo não disse: Ave Maria e sim, Ave, Cheia de graça. Mas este nome de Maria, efetivamente, se harmoniza com as palavras do Anjo, como veremos mais adiante. 

AVE 

— Na antiguidade, a aparição dos Anjos aos homens era um acontecimento de grande importância e os homens sentiam-se extremamente honrados em poder testemunhar sua veneração aos Anjos. A Sagrada Escritura louva Abraão por ter dado hospitalidade aos Anjos e por tê-los reverenciado. Mas um Anjo se inclinar diante de uma criatura humana, nunca se tinha ouvido dizer antes que o Anjo tivesse saudado à Santíssima Virgem, reverenciando-a e dizendo: Ave. 

— Se na antiguidade o homem reverenciava o Anjo e o Anjo não reverenciava o homem, é porque o Anjo é maior que o homem e o é por três diferentes razões: Primeiramente, o Anjo é superior ao homem por sua natureza espiritual. Está escrito: Dos seres espirituais Deus fez seus Anjos. (Sl 103).

— O homem tem uma natureza corrutível e por isso Abraão dizia a Deus: (Gn 18, 27) Falarei a meu Senhor, eu que sou cinza e pó. Não convém que a criatura espiritual e incorruptível renda homenagem à criatura corruptível. Em segundo lugar, o Anjo ultrapassa o homem por sua familiaridade com Deus. Com efeito, o Anjo pertence à família de Deus, mantendo-se a seus pés. Milhares de milhares de Anjos o serviam, e dez milhares de centenas de milhares mantinham-se em sua presença, está escrito em Daniel (7, 10). Mas o homem é quase estranho a Deus, como um exilado longe de sua face pelo pecado, como diz o Salmista: (54, 8) Fugindo, afastei me de Deus. Convém, pois, ao homem honrar o Anjo por causa de sua proximidade com a majestade divina e de sua intimidade com ela. Em terceiro lugar, o Anjo foi elevado acima do homem, pela plenitude do esplendor da graça divina que possui. Os Anjos participam da própria luz divina em mais perfeita plenitude. Pode-se enumerar os soldados de Deus, diz Jó (25, 3) e haverá algum sobre quem não se levante a sua luz? Por isso os Anjos aparecem sempre luminosos. Mas os homens participam também desta luz, porém com parcimônia e como num claro-escuro. Por conseguinte, não convinha ao Anjo inclinar-se diante do homem, até, o dia em que apareceu uma criatura humana que sobrepujava os Anjos por sua plenitude de graças, por sua familiaridade com Deus e por sua dignidade. Esta criatura humana foi a bem-aventurada Virgem Maria. Para reconhecer esta superioridade, o Anjo lhe testemunhou sua veneração por esta palavra: Ave. 

CHEIA DE GRAÇA 

— Primeiramente, a bem-aventurada Virgem ultrapassou todos os Anjos por sua plenitude de graça, e para manifestar esta preeminência o Arcanjo Gabriel inclinou-se diante dela, dizendo: cheia de graça; o que quer dizer: a vós venero, porque me ultrapassais por vossa plenitude de graça.

— Diz-se também da Bem-aventurada Virgem que é cheia de graça, em três perspectivas: Primeiro, sua alma possui toda a plenitude de graça. Deus dá a graça para fazer o bem e para evitar o mal. E sob esse duplo aspecto a Bem-aventurada Virgem possuía a graça perfeitissimamente, porque foi ela quem melhor evitou o pecado, depois de Cristo. O pecado ou é original ou atual; mortal ou venial. A Virgem foi preservada do pecado original, desde o primeiro instante de sua concepção e permaneceu sempre isenta de pecado mortal ou venial. Também está escrito, no Cântico dos Cânticos: (4, 7) Tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. «Com exceção da Santa Virgem, diz Santo Agostinho, em seu livro sobre a natureza e a graça; todos os santos e santas, em sua vida terrena, diante da pergunta: «estais sem pecados?» teriam gritado a uma só voz: «Se disséssemos: estamos sem pecado (cf. 1, Jo 1, 6), estaríamos enganando-nos a nós mesmos e a verdade não estaria conosco». «A Virgem santa é a única exceção. Para honrar o Senhor, quando se trata a respeito do pecado, não se faça nunca referência à Virgem Santa. Sabemos que a ela foi dada uma abundância de graças maior, para triunfar completamente do pecado. Ela mereceu conceber Aquele que não foi manchado por nenhuma falta». Mas o Cristo ultrapassou a Bem-aventurada Virgem. Sem dúvida, um e outro foram concebidos e nasceram sem pecado original. Mas Maria, contrariamente a seu Filho, lhe é submissa de direito. E se ela foi, de fato, totalmente preservada, foi por uma graça e um privilégio singular de Deus Todo Poderoso que é devido aos méritos de seu Filho, Jesus Cristo, Salvador do gênero humano.

— A Virgem realizou também as obras de todas as virtudes. Os outros santos se destacam por algumas virtudes, dentre tantas. Este foi humilde, aquele foi casto, aquele outro, misericordioso, por isto são apresentados como modelo para esta ou aquela determinada virtude; como, por exemplo, se apresenta São Nicolau, como modelo de misericórdia. Mas a Bem-aventurada Virgem é o modelo e o exemplo de todas as virtudes. Nela achareis o modelo da humildade. Escutai suas palavras: (Lc 1, 38) Eis a escrava do Senhor. E mais (Lc 1, 48): O Senhor olhou a humildade de sua serva. Ela é também o modelo da castidade: ela mesma confessa que não conheceu homem (cf. Lc 1, 43). Como é fácil constatar, Maria é o modelo de todas as virtudes. A Bem-aventurada Virgem é pois cheia de graça, tanto porque faz o bem, como porque evita o mal. 

— Em segundo lugar, a plenitude de graça da Virgem Santa se manifesta no reflexo da graça de sua alma, sobre sua carne e todo o seu corpo. Já é uma grande felicidade que os santos gozem de graça suficiente, para a santificação de suas almas. Mas a alma da Bem-aventurada Virgem Maria possui uma tal plenitude de graça, que esta graça de sua alma reflete sobre sua carne, que, por sua vez, concebe o Filho de Deus. Porque o amor do Espírito Santo, nos diz Hugo de São Vitor, arde no coração da Virgem com um ardor singular, Ele opera em sua carne maravilhas tão grandes, que dela nasceu um Homem Deus, como avisa o Anjo à Virgem santa: (Lc 1, 35) Um Filho santo nascerá de ti e será chamado Filho de Deus. 

— Em terceiro lugar, a Bem-aventurada Virgem é cheia de graça, a ponto de espalhar sua plenitude de graça sobre todos os homens. Que cada santo possua graça suficiente para a salvação de muitos homens é coisa considerável. Mas se um santo fosse dotado de uma graça capaz de salvar toda a humanidade, ele gozaria de uma abundância de graça insuperável. Ora, essa plenitude de graça existe no Cristo e na Bem-aventurada Virgem. 
Em todos os perigos, podemos obter o auxílio desta gloriosa Virgem. Canta o esposo, no Cântico dos Cânticos: (4, 4) Teu pescoço é como a torre de Davi, edificada com seus baluartes. Dela estão pendentes mil escudos, quer dizer, mil remédios contra os perigos. Também em todas as ações virtuosas podemos beneficiar-nos de sua ajuda. Em mim há toda a esperança da vida e da virtude (Ecl 24, 25). 

MARIA

— A Virgem, cheia de graça, ultrapassou os Anjos, por sua plenitude de graça. E por isto é chamada Maria, que quer dizer, «iluminada interiormente», donde se aplica a Maria o que disse Isaias: (58, 11) O Senhor encherá tua alma de esplendores. Também quer dizer: «iluminadora dos outros», em todo o universo; por isso, Maria é comparada, com razão, ao sol e à lua. 

O SENHOR É CONVOSCO

— Em segundo lugar, a Virgem ultrapassa os Anjos em sua intimidade com o Senhor. O arcanjo Gabriel reconhece esta superioridade, quando lhe dirige estas palavras: O Senhor é convosco, isto é, venero-vos e confesso que estais mais próxima de Deus do que eu mesmo estou. O Senhor está, efetivamente, convosco. O Senhor Pai está com Maria, pois Ele não se separa de maneira nenhuma de seu Filho e Maria possui este Filho, como nenhuma outra criatura, até mesmo angélica. Deus mandou dizer a Maria, pelo Arcanjo Gabriel (Lc 1, 35) Uma criança santa nascerá de ti e será chamada Filho de Deus. 
O Senhor está com Maria, pois repousa em seu seio. Melhor do que a qualquer outra criatura se aplicam a Maria estas palavras de Isaias: (12, 6) Exulta e louva, casa de Sião, porque o Grande, o Santo de Israel está no meio de ti. O Senhor não habita da mesma maneira com a Bem-aventurada Virgem e com os Anjos. Deus está com Maria, como seu Filho; com os Anjos, Deus habita como Senhor. O Espírito Santo está em Maria, como em seu templo, onde opera. O arcanjo lhe anunciou: (Lc 1, 35) O Espírito Santo virá sobre ti. Assim, pois, Maria concebeu por efeito do Espírito Santo e nós a chamamos «Templo do Senhor», «Santuário do Espírito Santo». (cf. liturgia das festas de Nossa Senhora). Portanto, a Bem-aventurada Virgem goza de uma intimidade com Deus maior do que a criatura angélica. Com ela está o Senhor Pai, o Senhor Filho, o Senhor Espírito Santo, a Santíssima Trindade inteira. Por isso canta a Igreja: «Sois digno trono de toda a Trindade». É esta então a palavra mais nobre, a mais expressiva, como louvor, que podemos dirigir à Virgem. MARIA.

— Portanto o Anjo reverenciou a Bem-aventurada Virgem, como mãe do Soberano Senhor e, assim, ela mesma como Soberana. O nome de Maria, em siríaco significa soberana, o que lhe convém perfeitamente.

— Em terceiro lugar, a Virgem ultrapassou aos Anjos em pureza. Não só possuía em si mesma a pureza, como procurava a pureza para os outros. Ela foi puríssima de toda culpa, pois foi preservada do pecado original e não cometeu nenhum pecado mortal ou venial, como também foi livre de toda pena. 

BENDITA SOIS VÓS ENTRE AS MULHERES 

— Três maldições foram proferidas por Deus contra os homens, por causa do pecado original. A primeira foi contra a mulher, que traria seu filho no sofrimento e daria à luz com dores. Mas a Bem-aventurada Virgem não está submetida a estas penas. Ela concebeu o Salvador sem corrupção, trouxe-o alegremente em seu seio e o teve na alegria. A Ela se aplica a palavra de Isaias: (35, 2) A terra germinará, exultará, cantará louvores. 

— A segunda maldição foi pronunciada contra o homem (Gn 3, 9): Comerás o teu pão com o suor de teu rosto. A Bem-aventurada Virgem foi isenta desta pena. Como diz o Apóstolo (1 Cor 7, 32-34): Fiquem livres de cuidados as virgens e se ocupem só com o Senhor. A terceira maldição foi comum ao homem e à mulher. Em razão dela devem ambos tornar ao pó. A Bem-aventurada Virgem disto também foi preservada, pois foi, com o corpo, assunta aos céus. Cremos que, depois de morta, foi ressuscitada e elevada ao céu. Também se lhe aplicam muito apropriadamente as palavras do Salmo 131, 8: Levanta-te, Senhor, entra no teu repouso; tu e a arca da tua santificação. 

MARIA a Virgem foi pois isenta de toda maldição e bendita entre as mulheres. Ela é a única que suprime a maldição, traz a bênção e abre as portas do paraíso. Também lhe convém, assim, o nome de Maria, que quer dizer, «Estrela do mar», Assim como os navegadores são conduzidos pela estrela do mar ao porto, assim, por Maria, são os cristãos conduzidos à Glória. 

BENDITO É O FRUTO DE VOSSO VENTRE

— O pecador procura nas criaturas aquilo que não pode achar, mas o justo o obtém. A riqueza dos pecadores está reservada para os justos, dizem os Provérbios (13, 22). Assim Eva procurou o fruto, sem achar nele a satisfação de seus desejos. A Bem-aventurada Virgem, ao contrário, achou em seu fruto tudo o que Eva desejou. 

— Eva, com efeito, desejou de seu fruto três coisas: Primeiro, a deificação de Adão e dela mesma e o conhecimento do bem e do mal, como lhe prometera falsamente o diabo: Sereis como deuses (Gn 3, 5), disse-lhes o mentiroso. O diabo mentiu, porque ele é mentiroso e o pai da mentira (cf. Jo 8, 44). E por ter comido do fruto, Eva, em vez de se tornar semelhante a Deus, tornou-se dessemelhante. Por seu pecado, afastou-se de Deus, sua salvação, e foi expulsa do paraíso. A Bem-aventurada Virgem, ao contrário, achou sua deificação no fruto de suas entranhas. Por Cristo nos unimos a Deus e nos tornamos semelhantes a Ele. Diz-nos São João: (1 Jo 3, 2) Quando Deus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos como Ele é.

— Em segundo lugar, Eva desejava o deleite (cf. Gn 3, 6), mas não o encontrou no fruto e imediatamente conheceu que estava nua e a dor entrou em sua vida. No fruto da Virgem, ao contrário, encontramos a suavidade e a salvação. Quem come minha carne tem a vida eterna (Jo 6, 55). 

— Enfim, o fruto de Eva era sedutor no aspecto, mas quão mais belo é o fruto da Virgem que os próprios Anjos desejam contemplar (cf. 1 Pe 1, 12). É o mais belo dos filhos dos homens (Sl 44, 3), porque é o esplendor da glória de seu Pai (Heb 1, 3) como diz S. Paulo. Portanto, Eva não pôde achar em seu fruto o que também nenhum pecador achará em seu pecado. Acharemos, no entanto, tudo o que desejamos no fruto da Virgem. Busquemo-lo.

— O fruto da Virgem Maria é bendito por Deus, que de tal forma encheu-o de graças que sua simples vinda já nos faz render homenagem a Deus. Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo, declara São Paulo (Ef 1, 3). O fruto da Virgem é bendito pelos Anjos. O Apocalipse (7, 11) nos mostra os Anjos caindo com a face por terra e adorando o Cristo com seus cantos: O louvor, a glória, a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém. 
O fruto de Maria é também bendito pelos homens: Toda a língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai, nos diz o Apóstolo (Fp 2, 11). E o Salmista (Sl 117, 26) o saúda assim: Bendito o que vem em nome do Senhor. Assim, pois, a Virgem é bendita, porém, bem mais ainda, é o seu fruto.